Rosana Sanford

Logo depois de se formar em letras, a paulistana Rosana Sanford veio para os Estados Unidos como au pair em 2001 e de imediato percebeu que queria ficar por aqui. Numa visita ao Havaí, nos últimos dias da viagem conheceu um californiano que acabou se tornando seu marido e pai de suas duas filhas. Na época ela morava em Nova Iorque, mas resolveu apostar na relação e seis meses depois se mudou de mala e cuia para a Bay Area.

Apaixonada por bibliotecas e cantigas infantis desde criança, Rosana desenvolve há quase três anos atividades que promovem a cultura brasileira entre crianças de 0 a 5 anos. Em janeiro de 2017, essas atividades deram origem ao projeto Histórias e Cantigas Brasileiras, que é realizado todas as terças-feiras, das 10h30 às 11h15, na Grand Ave Library, biblioteca em South San Francisco. O trabalho, voluntário, representa para Rosana uma grande realização pessoal. E sua iniciativa tem sido reconhecida: recentemente, ela foi eleita Voluntária do Ano 2019 da Biblioteca de South San Francisco. “Gosto de receber as famílias na biblioteca e de ter essa influência positiva na vida dessas pessoas”, diz. “Às vezes acho que fui presenteada com a possibilidade de criar as minhas filhas aqui e de mediar leituras para as crianças da biblioteca. Posso vivenciar algo que desejava e não pude ter e aprendo muito com elas.”

Por que você decidiu mudar para os EUA? 

Em 2000 eu trabalhava no departamento de cobrança do banco Bradesco e estava prestes a me graduar no curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie graças a uma bolsa de estudos integral. Eu não gostava do meu ambiente de trabalho e não era muito otimista em relação ao meu futuro na área de educação no Brasil. Meu plano era concorrer a uma vaga no programa de mestrado da Universidade de São Paulo ou vir para os Estados Unidos como au pair.

O plano A não deu certo, então, em 13 de maio de 2001, aos 21 anos, fiz o primeiro vôo da minha vida com destino ao aeroporto de Newark, no estado de Nova Jersey. Morei em Parsippany, também em Nova Jersey, por um ano com a minha família anfitriã e no término do meu programa de au pair, que naquele tempo durava apenas um ano, me mudei para a cidade de Nova Iorque.

Em setembro de 2005, fui sozinha conhecer a ilha de Oahu, no Havaí. Precisava aproveitar os últimos meses de validade da minha carteira de motorista. Lá, dois dias antes de ter que regressar para Nova Iorque, conheci o homem que hoje é meu marido. Namoramos à distância por seis meses e em abril de 2006 decidi arriscar mais uma vez e me mudar para San Francisco, cidade pela qual eu já tinha me apaixonado durante uma visita de uma semana em 2003. Morava sozinha, fazia cursos que estavam ao meu alcance e tinha ótimos amigos. Mas não hesitei em deixar aquela vida para trás. Confiava na possibilidade do meu relacionamento ser duradouro e lembrei dos momentos em que já tinha sonhado em me mudar pra cá. Agora eu tinha duas paixões aqui!

Você teve alguma dificuldade para se adaptar a viver nos EUA? Qual foi o momento mais difícil que enfrentou? Daria alguma dica em particular para quem está vindo pra cá ou para quem acabou de chegar?

Tive um certo choque ao chegar na casa da minha família anfitriã. Minha mãe-anfitriã era bastante independente e exigia o mesmo de mim. Não que eu não fosse, mas vi que ali eu não teria nenhum amparo emocional. No dia em que cheguei na casa dela, ela me deu a chave do carro e pediu que eu fosse passear. Naquele tempo eu não tinha smartphone nem GPS. Vi que tinha que procurar o caminho da roça e não demonstrar vulnerabilidade a ela.

Com o tempo e com as histórias que eu ouvia de outras au pairs, percebi que eu até que tinha me dado bem. Lá eu cuidava dos dois filhos dela, um de 5 anos e outro de 3. O mais velho era desafiador. Era portador de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (ADHD na sigla em inglês) e ficava agressivo quando não conseguia o que queria. Eu nunca tinha lidado com crianças daquele jeito. Era muito difícil, mas, felizmente, a mãe dele sempre confiou em mim e me apoiava nas decisões que eu tomava para discipliná-lo.

Acho que todo começo é difícil e cada um de nós tem uma história diferente. Prefiro não dar conselhos, apenas compartilhar a minha trajetória.

Como nasceu a ideia de desenvolver o trabalho de histórias e cantigas brasileiras com crianças aqui nos EUA? Você já tinha trabalhado com isso antes? 

Eu sempre fui frequentadora assídua de bibliotecas. Em todas as fases da minha vida elas estiveram presentes. Quando vim para os EUA, mais ainda, já que aqui elas não se limitam apenas ao empréstimo de livros.

Enquanto eu morava em San Francisco e trabalhava como babá, passei a frequentar os “storytimes“. Tenho a impressão que eu gostava mais do que as crianças. Fiz amizade com bibliotecários, outras babás e responsáveis que frequentavam as atividades com as crianças. Saíamos da biblioteca e continuávamos a manhã no parquinho. Essa era a minha comunidade.

A idéia de criar um grupo semelhante aos que eu frequentava em inglês, mas com atividades em português, surgiu logo após o nascimento da minha primeira filha, Gabriela, hoje com cinco anos. E essa ideia se fortaleceu quando ela começou a falar e eu passei a notar em encontros com amigos que pais brasileiros se comunicavam em inglês com seus filhos e, por consequência, as crianças também optavam pela língua inglesa. Eu pensava em criar o projeto, mas faltava encontrar um lugar.

Há três anos, quando a Lilian, minha segunda filha nasceu, surgiu a possibilidade de fazê-lo na biblioteca pública de South San Francisco após uma conversa que tive com o bibliotecário que mediava as atividades semanais para bebês. Foi no ano de 2016. Ele demonstrou interesse e curiosidade no bilinguismo das minhas filhas e disse, com pesar, que por conta da demência de sua avó ele já não podia mais se comunicar com ela. Ela é espanhola e conversou a vida toda com os filhos e netos em inglês. Agora que está doente, ela só fala em espanhol. Foi aí que notei que para ele a língua de herança e o respeito à diversidade linguística e cultural são tão importantes quanto são pra mim. Perguntei se ele gostaria que eu cantasse duas cantigas e mediasse uma leitura bilíngue no término das atividades dele em inglês. Ele aceitou prontamente e foi assim que as portas se abriram para as atividades que temos hoje.

Português não é uma língua muito requisitada no exterior e a comunidade brasileira não é uma das maiores na Bay Area. Como você conseguiu apoio da biblioteca e da comunidade para o seu projeto?

Eu vi que o momento era oportuno para conseguir o que queria. Tinha um bibliotecário curioso e entusiasmado e o Facebook como ferramenta para a divulgação das atividades. Ingressei em grupos locais de mães e passei a convidá-las semanalmente para as atividades. Embora elas fossem bem curtas, já que eu ia a reboque do “Boucing Babies Storytime”, a comunidade brasileira começou a frequentar em grande número a biblioteca.

Prosseguimos com as atividades informalmente de setembro a dezembro de 2016. Até que por algum motivo que até hoje eu desconheço o mesmo bibliotecário que se mostrou a favor das nossas atividades informou que teríamos que interrompê-las. A essa altura a presença da comunidade brasileira na biblioteca já era considerável e as discussões continuavam em rede social. Foi então que uma mãe decidiu enviar um e-mail à biblioteca dizendo que se sentia discriminada com a decisão tomada. Em menos de duas horas ela recebeu um retorno do assessor da diretora da biblioteca nos convocando para uma reunião. Saímos de lá com um dia e horário exclusivos para as atividades em português que eu coordenaria. Foi aí que passei a amar ainda mais a biblioteca pública de South San Francisco e chamá-la de minha. Na primeira terça-feira de janeiro de 2017, sediamos o nosso primeiro encontro na Grand Ave Library.

 

 

Como são esses encontros semanais? Só famílias brasileiras participam?

Costumo organizar as atividades em um módulo de oito semanas. A criança na primeira infância aprecia a repetição e este processo faz que, com o passar do tempo, elas comecem a se apropriar do conteúdo compartilhado.

As atividades são exclusivamente em português, mas não são restritas a lusófonos. Recebemos regularmente responsáveis curiosos de diversas nacionalidades que apreciam este tipo de exposição linguística e cultural na vida deles e das crianças. Já recebemos romenos, russos, gregos, hispânicos e asiáticos de diversos países, americanos e por aí vai. Sempre prossigo com as atividades em português. Se vejo necessidade, explico o contexto do que está acontecendo. Muitos parecem gostar e voltam sempre que possível.

Como você consegue os livros em português?

Logo que concedeu o espaço para a mediação de atividades em português, o assessor da diretora também anunciou que trabalharia na criação de um acervo em português na nossa biblioteca. Algumas semanas depois, uma compra de 80 livros foi fechada com Bárbara Gomide, da livraria infantil Janelinha Cultural. Também passamos a receber doações de indivíduos da comunidade e escritores brasileiros. O clube de leitura Quindim também fez uma generosa doação ao nosso acervo. No ano passado, uma outra compra de aproximadamente 30 livros foi fechada com a Brasil em Mente, ONG com sede em NYC que trabalha na promoção do PLH (Português como Língua de Herança) e formação de professores na área.

Para as mediações, uso livros adequados à faixa etária das crianças que frequentam o projeto e livros que também fluam bem com o grupo, já que a atenção das crianças pequenas é limitada. As ilustrações e o ritmo das histórias são tão importantes quanto o seu enredo. Como nem todos os livros do nosso acervo são adequados a crianças de 0 a 5 anos, muitas vezes levo livros da minha casa para os encontros.

Essas histórias e cantigas fizeram parte da sua infância ou você acabou descobrindo a maioria delas depois, conforme foi desenvolvendo o projeto?

As cantigas fizeram parte da minha infância. Eram até mesmo uma das atividades que eu mais gostava no prezinho. Cantávamos em fila antes de entrar na sala de aula.

Quanto aos livros e histórias, não tive muito acesso. Sequer tenho lembranças de professores de educação infantil lendo para os alunos. Em casa também não tínhamos livros, mas desde cedo eu tinha curiosidade em saber o que os sinais na rua diziam e abusava das chamadas para a Carochinha, um serviço telefônico pago que contava histórias, toda vez que a minha mãe me levava para a casa de seus patrões. Acho que a conta das ligações nunca chegou às mãos deles. Eram americanos e a empresa multinacional para a qual trabalhavam pagava boa parte das despesas da família.

Às vezes acho que fui presenteada com a possibilidade de criar as minhas filhas aqui e de mediar leituras para as crianças da biblioteca. Posso vivenciar algo que desejava e não pude ter e aprendo muito com elas.

Você também usa esses encontros semanais para celebrar datas importantes da cultura brasileira, como Carnaval e Festa Junina. Quais festividades você inclui no calendário e como surgiu essa ideia?

Sim! O intuito do projeto é não somente resgatar a língua de herança que, muitas vezes, é deixada de lado, mas também as tradições culturais brasileiras. Nos módulos de oito semanas procuro sempre trazer cantigas e parlendas – versos infantis ritmados e repetitivos – que remetem a celebrações da época. Também comemoramos o Carnaval, Festa Junina, Dia do Folclore, Dia da Criança e Natal.

Você fala português em casa com suas filhas? Seu marido também fala português? Suas filhas também participam dos encontros na biblioteca?

Eu converso com as minha filhas apenas em português. Meu marido, o Matt, passou a entender a língua portuguesa muito mais depois do nascimento delas. Em nossas interações na mesa de jantar, por exemplo, minhas filhas se dirigem a mim em português e ao pai em inglês. Quando necessário, eu explico a ele o que estamos discutindo. Minhas filhas também se comunicam em português quando conversam entre elas. Até o momento tenho conseguido com sucesso que o português seja a língua da nossa casa. O apoio e respeito do Matt contam muito. Vejo que a dinâmica é um pouco diferente em famílias em que o parceiro não se sente tão confortável com a língua minoritária.

A minha filha mais velha frequentou as atividades na biblioteca até o ano passado. Com o ingresso no Kindergarten, o horário não permite mais, mas a Gabriela expressa com frequência o quanto sente falta dos encontros. Já a mais nova está comigo sempre. Assim como a Gabriela fez, a Lilian frequenta a pré-escola apenas três manhãs por semana.

Quais os seus planos futuros para o projeto? Tem algum sonho em particular?

Em fevereiro mediei a primeira atividade de sábado voltada ao público mais velho. Fizemos geleca caseira. Minha meta é levar uma atividade mensal e explorar diversas áreas do conhecimento. Em março tivemos arte e em abril teremos física. Essas atividades contam com o apoio de dois voluntários entusiastas das respectivas áreas. Aprecio grandemente colaborações como estas e gostaria de recebê-las com mais frequência. Além disso, também gostaria de ampliar o nosso acervo público. Acredito que a melhor forma de fazê-lo seja adquirindo descontos ou doações de editoras. Seria incrível se eu pudesse contar com o auxílio de alguém para lidar com a questão burocrática no contato com editoras, escritores, clubes de leitura e/ou indivíduos.

Além disso, também gostaria de ampliar o nosso acervo público. Acredito que a melhor forma de fazê-lo seja adquirindo descontos ou doações de editoras. Seria incrível se eu pudesse contar com o auxílio de alguém para lidar com a questão burocrática no contato com editoras, escritores, clubes de leitura e/ou indivíduos.

O que é mais gratificante nesse trabalho pra você?

As interações que tenho com as crianças e suas famílias. Saber que mesmo aquela criança que é muito tímida se solta quando fazemos bolinhas de sabão ou volta pra casa cantando o que aprendeu comigo. Gosto de receber as famílias na biblioteca e de ter essa influência positiva na vida dessas pessoas.

Por |2024-06-15T20:30:21+00:004 de abril de 2019|Sua História|

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