Valéria Sasser

Há 18 anos, apostando num relacionamento que dura até hoje e que começou no velho chat ICQ, Valeria Sasser deixou o Brasil e veio para a Califórnia. Aqui, sempre esteve extremamente ligada à comunidade brasileira, seja por meio de entidades voltadas à língua portuguesa ou representando a nós, brasileiros no exterior, como voluntária junto a um canal de comunicação do Itamaraty.

Com esse olhar privilegiado, Valeria desenvolveu uma visão crítica sobre a nossa comunidade e sugere que estejamos mais dispostos a aprender com os latinos e portugueses, por exemplo, que há muito mais tempo trilham essa estrada.

E, mesmo considerando os altos e baixos da vida de imigrante, ela deixa claro que a experiência vale a pena, desde que estejamos despidos de nossos preconceitos e abertos para o novo.

 

Como era sua vida no Brasil?

Minha vida no Brasil era bastante comum. Virei adulta no eixo Rio-Niterói durante os anos 80. Época bastante confusa, com inflação alta e, com o final da ditadura militar, de reorganização política. Trabalhei em grandes empresas no Brasil e como tradutora free-lance nos últimos anos antes de imigrar. Meu primeiro emprego foi na Varig, o que me permitiu conhecer muito do Brasil, desde Alter do Chão, no Pará, até o Rio Grande do Sul. Cresci em um mundo analógico e fiz a transição para o mundo digital. Utilizei tanto máquina de escrever quanto processadores de texto e considero isso uma vantagem, pois me dá a capacidade de ver certas coisas mais globalmente, além de agilidade para mudar de direção e abraçar o novo, o diferente. Sempre gostei muito de praia, sol, calor. E é disso que mais sinto falta aqui na Bay Area com suas praias de águas congelantes e vento frio.

Como você veio parar nos EUA? Quais foram seus maiores desafios?

Eu me apaixonei por um americano que era militar, ainda na ativa. Ele não podia ir para o Brasil, a única opção era eu vir pra cá. Nunca havia pensado seriamente em imigrar. Acreditem ou não, eu o conheci no antigo chat do ICQ, em 1998, bem no início de tudo isso. Para se ter uma ideia, o Google tinha sido fundado dois anos antes, e o Facebook só veio a ser criado em 2004. Smartphones ainda não existiam, portanto nada de Skype ou Facetime e e-mail era o meio mais rápido de comunicação.

Os desafios foram vários. Eu falava inglês, mas aqui percebi que falhava na fluência e imediatamente entrei em uma escola para adultos e no community college. Quiseram me colocar no English as Second Language (ESL), mas me recusei, afinal eu já falava e entendia tudo. Me matriculei em matérias com muito texto e explanações vigorosas.

Esse passo foi fundamental para adquirir a fluência que eu buscava. Cometia erros e seguia em frente. A brusca mudança cultural gerou muitos conflitos entre eu e meu marido no início, mas hoje rimos das histórias, algumas muito engraçadas.

O que você gostaria que soubesse antes de ter se mudado

Apesar de saber que haveria diferenças culturais, eu não sabia o quão profundas elas seriam. Quando se casam, homens e mulheres têm um choque cultural (foram criados em casas diferentes, com hábitos e atitudes diferentes, além de serem homem e mulher). No meu caso, as opções anteriores, acrescidas de cultura e país diferentes, imigrante versus local. Ele nasceu e cresceu no chamado Southwest e estávamos na Califórnia, portanto, ele mesmo enfrentava diferenças culturais com a cultura que eu estava abraçando. E, para piorar, ele é republicano e eu, democrata (não, ele não votou no atual presidente, apesar do partido). Se eu conhecesse mais profundamente esses e outros detalhes da cultura americana, eu poderia ter feito muita coisa diferente e ter me adaptado mais rapidamente.

Quais foram seus projetos mais importantes aqui na Bay Area e com a comunidade brasileira?

De todos os projetos, eu mencionaria três como mais importantes: o Projeto Contadores de Estórias, que liderei de 2007 a 2012; o Instituto Brasil de Educação e Cultura (IBEC), cuja fundação foi liderada por mim em 2011; e minha experiência como porta-voz do Conselho de Cidadãos de São Francisco junto ao Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE) – deste último eu ainda sou ativa.

Os dois primeiros foram importantes por serem canais de acesso à língua portuguesa na nossa região. O último, por me permitir trabalhar junto ao governo brasileiro, inspirando, corrigindo e sugerindo políticas públicas que auxiliem a via transnacional de estimados 4 milhões de brasileiros no exterior. Conseguimos, ao longo dos anos, vitórias importantes, como o passaporte de dez anos. Agora, estamos trabalhando a respeito da sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a cidadania brasileira. Ao participar das reuniões e conferências com brasileiros residentes no mundo inteiro, temos a perspectiva de quanto nosso trabalho voluntário no CRBE é importante. Para mais detalhes sobre o CRBE, vejam o decreto que o criou  e o plano de ação.

Além dos projetos acima, escrevi regularmente para duas publicações voltadas aos brasileiros, escrevo ocasionalmente para a Medium e o LinkedIn, fiz parte por um ano do conselho da Brazilian Alliance e organizo vários eventos durante o ano ligados à promoção e difusão da língua portuguesa, tais como cursos e workshops para a formação de professores e a celebração do Dia da Língua Portuguesa. Desde dezembro, sou editora-chefe do Portuguese Language Journal, publicação acadêmica ligada à American Organizations of Teachers of Portuguese (AOTP), da qual também já fui conselheira para a Costa Oeste.
Colaborei ainda com vários projetos, tais como o Plano Ato Brasil, que visa informar os brasileiros sobre seus direitos imigratórios e projetos de terceiros que estejam alinhados com minhas perspectivas e valores.

Fale um pouco sobre a sua experiência com o trabalho com a comunidade brasileira da Bay Area. Quais as oportunidades e desafios de trabalhar com a comunidade brasileira?

Essa pergunta é complicada. De cara, posso dizer que a falta de engajamento e de apoio da comunidade é um dos maiores problemas. A comunidade, de modo geral, é extremamente individualista e muitas vezes egoísta mesmo. Me espanta a falta de empatia com o brasileiro ao lado e o imediatismo. Empresas e negócios dedicados aos brasileiros muitas vezes fecham pela falta de apoio e compromisso da comunidade, que vão do desinteresse até o calote. Maus hábitos trazidos do Brasil que podem destruir uma comunidade.

Nesses meus 16 anos de observação privilegiada, a comunidade mudou consideravelmente e parece bastante volátil. Há um movimento grande de brasileiros dentro das comunidades, pessoas chegando e partindo todo o tempo, tanto pessoas sem especialização quanto pessoas com muita especialização. Manter a informação corrente e constante e promover a integração dos antigos com os recém-chegados é um desafio para grupos como o BRAVE.

Outro problema é o fato de o brasileiro não se associar nem aprender com comunidades mais antigas, como a dos latinos. E olha que somos latinos também. Não somos hispânicos, mas somos latinos. O mesmo ocorre com a comunidade portuguesa, com os brasileiros trazendo para cá e replicando preconceitos antigos e inúteis no relacionamento com essas comunidades, desde o desdém e o ridículo baseados na ignorância com relação a culturas ricas e similares à nossa até a exploração de latinos por empregadores brasileiros. Essas comunidades, por estarem mais tempo na estrada, podem nos ensinar e podem também ajudar a fortalecer a nossa voz.

Qual a sua sugestão para que a comunidade se torne mais engajada e unida?

A comunidade precisa se ver como comunidade. Os brasileiros, em geral, são bem individualistas e não veem o outro como parceiro, mas como concorrente. Outros repetem aqui os comportamentos predadores que criaram o clima de desconfiança que existe no Brasil. Outros ainda trazem arrogância e preconceitos daquela sociedade e os replicam aqui. O preconceito linguístico, por exemplo. Quando eu liderava o IBEC, tínhamos professores de todas as partes do Brasil, inclusive do Nordeste. Uma vez, os pais de duas crianças disseram que queriam que elas aprendessem o português com um sotaque, digamos, de mais prestígio (não usaram exatamente essas palavras…). Eles não queriam que seus filhos aprendessem o sotaque nordestino. Como se a língua fosse estática e como se os sotaques deles próprios não fossem mais influentes. Como se essas crianças fossem falar com o sotaque do professor. São alunos de herança, falariam com seus sotaques estrangeiros e o sotaque da família.

Outro problema são as condutas moralmente reprováveis que muitos têm dentro da comunidade. Por exemplo, uma pessoa encomendou dois centos de salgadinhos de uma brasileira em caráter de emergência. No momento que a mesma ligou avisando que tudo estava pronto, a pessoa que fez a encomenda disse que não queria mais, porque encontrou mais barato em outro lugar. Outro que alugava quartos e explorava todo mundo até que foi levado à Justiça. Esse tipo de coisa cria discórdia e gera ressentimento, desconfiança. Por que fazer isso? Outra questão é a de agir por impulso, sem analisar as situações, sem pensamento crítico. É preciso ter cuidado.

Aqui, somos todos imigrantes brasileiros. Não importa regionalismos, preconceitos, somos apenas brasileiros no exterior. Devemos ter compromisso, cada um de nós, com todos nós. Devemos nos cuidar e nos respeitar.

Você tem algum mentor, alguém que te inspirou ou ainda inspira?

São vários e nem me arriscaria a mencionar nenhum para não correr o risco de ser injusta com alguém. Além de pessoas com as quais tenho contato pessoal, sou ávida leitora. Leio desde livros e artigos acadêmicos sobre transnacionalismo, educação e língua portuguesa até livros sobre negócios, política, tecnologia, ciências sociais, dentre outros muitos. Sou uma colcha de retalhos de todas essas influências e informações. Tenho muito a aprender todo dia.

Quais os próximos planos?

Venho considerando concorrer a cargos públicos na minha cidade aqui nos Estados Unidos. Ainda não tomei uma decisão. Mas se me candidatar e vencer, serei a primeira brasileira eleita a um cargo público na Califórnia.

Eu trabalho para o judiciário estadual há mais de dez anos e vejo com respeito o trabalho duro feito dentro da minha agência, observo a criação de políticas públicas de perto. Além disso, meu envolvimento comunitário e com o governo brasileiro na concepção de políticas públicas brasileiras, assim como meus contatos locais com outras comunidades de cor, me deram uma perspectiva valiosa sobre o que as comunidades precisam. Acredito que há muito a fazer nas políticas públicas locais para que elas sejam mais inclusivas e respeitem as comunidades imigrantes, dentre vários outros assuntos abordados sob a lógica e a perspectiva progressista. Mesmo que o imigrante já seja cidadão americano, essa sociedade, mesmo que sutilmente, coloca um telhado de vidro sobre pessoas com sotaques ou de cor. Especialmente agora, sob essa administração racista e sem compromisso com a inclusão social.

Os ideais progressistas que remontam à fundação deste país são baseados na perspectiva moral de empatia e na responsabilidade de cada um com um Estado que protege e empodera seus cidadãos. Uma comunidade forte se faz com pessoas de todos os extratos sociais, dos menos favorecidos aos ricos. Todos lucram e crescem com a solidez de ter todos os pontos de vista sendo levados em consideração. Tenho certeza que a força de vontade e a coragem que o imigrante tem de modo geral, apenas pelo fato de  imigrar, é a mesma necessária para a vida política. Espero ver outros brasileiros e brasileiras concorrendo a cargos públicos.

Alguma dica para quem está se mudando pra cá ou quer trilhar um dos caminhos que você já trilhou?

Venha sem medo. Mas dispa-se de muitas de suas certezas sobre o que é a cultura americana. E venha com o coração aberto para aprender tudo de bom que essa sociedade tem a oferecer.

Separe o joio do trigo. Desvencilhe-se de seus preconceitos sociais e síndromes diversas, como o complexo de vira-lata.

Venha apreciar e aprender. Existe uma curva imigratória pela qual todos passamos, em maior ou menor escala, que é composta de quatro fases: lua-de-mel, realidade, fundo do poço e assimilação/aculturação (chamo de fase de paz). Na primeira, chegamos em “awe”, depois vamos vendo o que há de bom e ruim na sociedade local e comparando. Após essa fase, chegamos ao fundo do poço, quando achamos o novo local o fim do mundo e temos o impulso de voltar. Por fim, começamos a nos reerguer de novo, vendo coisas boas, comparando novamente e pesando os prós e contras, já participando da cultura e da vida local. Tendo em mente que você passará necessariamente por uma ou mais dessas fases, já é uma vantagem ter consciência que imigrar é de fato um grande processo.

Além disso, tenha em mente que, depois de se adaptar, você terá uma vida transnacional, pertencendo a dois lugares simultaneamente. Em tempos de globalização e tecnologia, isso é fantástico. Curta seu momento e participe de grupos como o BRAVE, Brasileiros em São Francisco, etc. Vá aos eventos comunitários. Faça aquele esforço extra para se integrar às comunidades. Vale a pena.