Categoria: Sua História

  • Brazilian Breads e KIVA: deu samba! – História da Delvira

    Quando aprendeu a cozinhar, aos 13 anos, Delvira Rodrigues se apaixonou. Naquela cozinha aconchegante, cheirando a biscoito de polvilho e pão de queijo, ela só queria saber de absorver os conhecimentos culinários que a mãe e as tias tinham acumulado ao longo da vida. Ali nascia a vontade de passar o maior tempo possível entre panelas e ingredientes, mas ela nem poderia imaginar que, anos mais tarde, se veria em um outro país, tocando sua empresa de quitutes brasileiros, a Brazilian Breads, e tendo de lidar com as delícias e os desafios de ver seu sonho de criança se tornar realidade.

    Em meados de Abril deste ano, Delvira comemorou mais uma etapa vencida: a conquista do primeiro financiamento concedido à sua empresa. O dinheiro – que já está sendo investido na compra de novos equipamentos, no treinamento de mais um integrante para a equipe e na confecção de uniformes – não veio por meio de um banco, mas da Kiva, uma organização sem fins lucrativos localizada em São Francisco. A plataforma permite que pessoas como eu e você apoiem o desenvolvimento de pequenos negócios, investindo a partir de US$ 25.

    “Muita gente nunca tinha ouvido falar desse tipo de alternativa. Mas, uma vez que elas tinham acesso à informação e entendiam como tudo funcionava, se mobilizavam para ajudar. É uma coisa muito bonita, muito poderosa ver o outro apoiando a realização do seu projeto. Teve gente que, mesmo não podendo contribuir financeiramente, fez questão de ajudar na divulgação da campanha, trazendo outros apoiadores. Por tudo isso serei eternamente grata”, compartilha Delvira.

    Portas que se fecham, janelas que se abrem
    Com participação de investidores americanos e brasileiros, a campanha de financiamento da Brazilian Breads na Kiva atingiu seu valor-alvo uma semana antes do prazo final. A alegria de Delvira ao falar sobre a experiência é evidente. Especialmente quando relembra as dificuldades que enfrentou quando, depois de dois anos de trabalho duro vendendo quitutes brasileiros em feiras e festivais, decidiu que era a hora de investir em um ponto fixo para seu business.

    Ela encontrou um local perfeito em Berkeley, mas que precisava de uns ajustes. Todas as economias que tinha acabaram sendo investidas na reforma e ela percebeu que teria de buscar financiamento para colocar o café para funcionar. Respirou fundo e começou a ir aos bancos com seu Business Plan em mãos.

    Delvira perdeu a conta de quantos visitou e das vezes em que, sentada de frente para o gerente, ouviu a mesma palavra: não. Embora o business fosse formalizado e tivesse todas as licenças exigidas, seu fluxo de caixa não parecia muito atrativo para os bancos.

    Quando já estava prestes a partir para o plano B (deixar o empréstimo empresarial de lado e aceitar um pessoal), surgiu uma opção que ela nem imaginava que existisse. Na época, Delvira estava frequentando um curso de Food Business e Empreendedorismo no Small Business Development Center (SBDC) e compartilhou com sua orientadora a resistência que estava encontrando ao buscar financiamento. “Você já ouviu falar da Kiva?”, a orientadora perguntou.

    Ação e reação
    Não, ela não tinha ouvido. Mas foi logo tratando de pesquisar e descobrir. Uma série de fatores chamaram sua atenção: o empreendedor não paga juros; tem um prazo confortável de 36 meses para quitar o empréstimo; e, assim que atinge o objetivo de sua campanha, recebe o dinheiro em poucos dias, sem complicação, via PayPal.

    No site da Kiva, ela encontrou o formulário para iniciar o processo de candidatura. Preencheu tudo, enviou e esperou ansiosa pelo retorno, que veio em alguns dias. Pronto, seu projeto tinha sido aprovado e ela poderia começar a Fase 1 da campanha de financiamento: encontrar 25 familiares ou amigos que se dispusessem a ser os primeiros investidores. Não foi difícil contagiar a família: o objetivo foi cumprido em uma semana. Era hora de partir para a segunda e última etapa: a campanha pública.

    Embora tenha sentido um friozinho na barriga porque essa fase dependeria de “pedir ajuda” a desconhecidos, Delvira decidiu encarar de frente e começou sua divulgação nas redes sociais. A informação foi se espalhando e ela percebeu que a resposta positiva era muito maior do que ela poderia imaginar.

    “Uma coisa que aprendi com esse financiamento foi que, uma vez que você tem a coragem de pedir ajuda, vai descobrir que muita gente está disposta a ajudar. Posso citar o exemplo do apoio que recebi do BRAVE na divulgação. Quando as meninas fizeram contato comigo, estava com 70% da meta atingidos, mas já batia uma insegurança de não chegar aos 100%. Só que depois da publicação do post no blog, muitas integrantes do grupo me procuraram para saber mais sobre o projeto e senti que a onda de apoio se fortaleceu. No final, a meta foi atingida com uma semana de antecedência!”, conta.

    Apoio mútuoHoje, Delvira diz que a experiência não apenas serviu para impulsionar seu negócio, mas para mudar sua percepção de mundo. Ela também se transformou em investidora em projetos que estão na Kiva e acredita que, apoiando pequenos negócios locais, sua empresa só tem a ganhar. “Ao dar suporte a esses projetos, estamos apostando no desenvolvimento da nossa região. E esse crescimento beneficia tudo e todos que estão ao redor”, acredita.

    Seu sonho para os próximos anos é abrir outras unidades do Brazilian Breads pela Bay Area. “Dando um passo de cada vez, trabalhando muito e aprendendo com as experiências”, pondera. Ela também espera ver cada vez mais negócios de brasileiras florescendo na região.

    “Vejo tanta gente talentosa na nossa comunidade, mas são poucas que decidem abrir uma empresa. Talvez pelo mesmo motivo que me segurou por um tempo: como imigrantes, nos sentimos um pouco acanhados, com medo de nos arriscar em um país com leis diferentes das que conhecemos. Mas a realidade é que imigrantes de outros países chegam aqui nas mesmas circunstâncias, abrem seus negócios e prosperam com serviços e produtos bem menos atrativos que os nossos. Acho que o que nos falta nessa área é só uma dose extra de autoconfiança. E apoio mútuo. Com nosso talento e o suporte da comunidade, vamos longe!”

    Kiva pra quê?
    Financiar seu projeto
    • Se você tem uma empresa legalizada e precisa de dinheiro para incrementar o negócio, pode se candidatar a um empréstimo pela plataforma.
    • Sua candidatura começa com o preenchimento de um formulário online, no qual você vai informar os dados da sua empresa, dizer o valor que pretende arrecadar e detalhar como vai usar o dinheiro.
    • Se sua candidatura for aprovada, começa a sua campanha na plataforma. Ela é composta de uma fase privada (amigos e parentes contribuem) e fase pública (qualquer pessoa pode investir).
    • Uma vez que você atinge sua meta e a campanha termina, a transferência de dinheiro é feita por meio do PayPal.
    • Você tem 36 meses para pagar o empréstimo, sem juros.

    Ajudar projetos de outras pessoas
    • Você pode fazer doações diretas que vão de US$ 25 até US$ 200.
    • A quantia que você investiu retorna para você em até 36 meses.
    • Depois que o dinheiro que você emprestou retorna, você pode optar por reinvestir esse dinheiro na rede ou sacar.
    • É importante ter em mente que qualquer empréstimo está baseado no compromisso de quem toma o empréstimo de honrar a dívida depois de algum tempo. Por isso, sempre existe um certo nível de risco nesse tipo de operação. A taxa de pagamento de empréstimo da Kiva, no entanto, é bem alta: 97%.
    • A Kiva é uma organização internacional, portanto, você pode apoiar projetos no mundo todo.
    • O que você ganha com isso? A chance de ver mais pequenos empreendedores prosperando e fazendo sua comunidade crescer junto!

    Saiba mais:
    Kiva – www.kiva.org
    Braziliam Breads – www.brazilianbreads.com

     

  • Carmela Dantas Barbosa Tricaud

    Carmela Dantas Barbosa Tricaud

     

    Mineira, goiana, candanga. É assim que se define Carmela Dantas Barbosa Tricaud, que em janeiro de 2015 se mudou para a Bay Area, após sete anos na França. “Nasci em Minas, fui criada em Goiânia e morei 12 anos em Brasília. E minha mãe é paraibana. Também possuo a nacionalidade francesa. Eu não sei dizer de onde sou”, diz essa bióloga de 47 anos casada com um francês e mãe de três filhos.

    Carmela nunca tinha pensado em se mudar para os EUA, mas acabou vindo pra cá devido ao trabalho do marido, funcionário de uma empresa de tecnologia e que sonhava em viver no Vale do Silício. E aqui ela também conseguiu se reinserir no mercado de trabalho, na área em que sempre atuou: pesquisa de novos medicamentos para a cura do câncer.

    Uma de suas dicas para as brasileiras que buscam retomar a carreira nos EUA é “olhar para fora do quadrado”. “Talvez você não encontre um emprego na sua profissão original, mas encontre em áreas relacionadas. E na Bay Area existe todo tipo de empresa, é uma das principais vantagens da região”, diz.

     

    Por que você se mudou para os Estados Unidos?

    Eu nunca tinha pensado em vir para os EUA. A mudança pra cá se deu em função do meu marido. Eu morava na França há sete anos, fazendo pós-doutorado, me casei com um francês, e ele, que trabalha na área de informática, sonhava em vir pro Vale do Silício. Ele começou a trabalhar em uma empresa americana e recebeu a proposta da transferência. Eu estava de licença maternidade, meu filho tinha quatro meses. Avaliei que para mim também seria uma boa oportunidade. Eu trabalho com pesquisa sobre câncer e poderia atuar no setor privado. Chegamos em janeiro de 2015.

    Foi fácil para você se recolocar?

    Eu já cheguei com visto de trabalho, o que sem dúvida foi fundamental. Meu marido veio com o visto L-1 e eu com o L-2, para dependentes, que me deu direito a solicitar a autorização para trabalhar legalmente aqui. Logo fui chamada para fazer algumas entrevistas, mas percebi que não estava preparada. Precisava refazer o meu CV pro mercado daqui. O americano é excelente em marketing pessoal e isso precisava já constar no meu currículo. Eles têm uma maneira extremamente interessante de valorizar o que fizeram, a experiência que possuem, e a gente não sabe fazer igual. Contei com a ajuda de amigos que já estavam aqui pra isso, mas há empresas especializadas que pode valer a pena contatar. Uma delas é a Upwardly Global. Percebi também que nas entrevistas eu tinha que ser mais pró-ativa, perguntar mais sobre a empresa, por exemplo. Mas como estava pensando em ter mais filhos, acabei deixando de lado a busca de emprego. Engravidei de novo e tive um casal de gêmeos. Só voltei a trabalhar quase dois anos depois de chegar nos EUA.

     

    Como você achou o seu atual emprego?

    Na verdade foi meio a empresa que me achou. Eu tinha me candidatado a uma vaga nessa empresa assim que cheguei aqui, mas nem cheguei a ser contatada na ocasião. Tempos depois, eles buscavam alguém com o meu perfil para substituir uma pessoa que sairia de licença maternidade. Foi aí que entraram em contato comigo. O processo de seleção foi muito rápido, eles tinham pressa. Meus filhos gêmeos estavam na época com cinco meses, achei o momento propício para voltar à ativa. Em duas semanas comecei a trabalhar e acabei ficando, estou lá desde novembro de 2016. Trabalho como cientista assistente sênior na farmacêutica Celgene, fazendo ensaios em laboratório para identificar novos medicamentos para tratamento do câncer, área na qual eu já trabalhava desde a época do meu doutorado.

    Você sente algum preconceito ou alguma dificuldade em particular no seu trabalho pelo fato de ser estrangeira?

    Não. No corpo de cientistas da empresa onde eu trabalho há muitos estrangeiros, é uma companhia muito globalizada. Acredito que sempre existe lugar ao sol para quem trabalha direito e gosta do que faz. Mas acho importante ressaltar que casos de preconceito não é algo exclusivo dos EUA. Em quase todos os países há preconceito com relação a um povo específico. Na Alemanha é contra os turcos, na França contra os argelinos, aqui contra os mexicanos. O Brasil mesmo agora está vivendo uma onda de imigração de venezuelanos e já houve quem defendesse o fechamento da fronteira.

    No caso de quem só estudou em faculdades/ universidades do Brasil, nem sempre conhecidas aqui, você acha que é preciso fazer algum curso nos EUA para facilitar a recolocação?

    Todos os meus diplomas são de universidades brasileiras. Mas como optei por fazer ciência, fiz três pós-doutorados na França, onde tive a oportunidade de trabalhar com tecnologia de ponta, o que me preparou para o mercado de trabalho daqui. Mas aqui existe oportunidade de trabalho para todos os níveis de formação. O que eu aconselho é que as pessoas verifiquem a equivalência do seu diploma. Também há empresas especializadas nisso, que fazem a chamada “credential evaluation”, como a World Education Services (WES) ou a North America Educational Group- (NAEG). Se você cursou cinco ou seis anos de graduação no Brasil, aqui poderá ser equivalente a um mestrado. É importante checar.

    Também acho importante manter a cabeça aberta para oportunidades na sua área de atuação, mesmo que em funções diferentes do que você fez anteriormente. Se você se formou em fisioterapia no Brasil, por exemplo, você não poderá trabalhar como fisioterapeuta aqui, mas pode trabalhar em uma empresa que desenvolve próteses. E aqui especificamente na Bay Area há empresas inovadoras em todas as áreas, onde seu conhecimento pode ser útil no desenvolvimento de novos produtos e serviços. Qualidades como capacidade de síntese e organização são extremamente procuradas, além de qualidades pessoais como comprometimento com o trabalho e boas relações com os colegas. Talvez isso seja mais importante para você conseguir uma posição no setor privado do que a origem do seu diploma. Temos que saber olhar fora do quadrado. E outra dica importante: não pode mentir, dizer que possui o diploma de um curso que não concluiu, por exemplo. As empresas daqui checam tudo que colocamos no nosso CV.

    Você morou na França e na Inglaterra antes de vir pra cá. Qual foi a principal diferença para se adaptar a viver nesses países e nos EUA?

    A minha vida era muito diferente quando fui pra Europa e quando vim pra cá, então é difícil comparar. Quando fui pra Europa era solteira, não tinha filhos, minha vida era muito mais simples. Mas o fato é que quando deixamos o nosso país, seja para onde for, perdemos a nossa rede de contatos – em nível pessoal e profissional – que desenvolvemos ao longo da vida. E o maior desafio e reconstruí-la no novo país. Essa rede vale para tudo. Para escolher um médico, achar um encanador de confiança, um bom despachante e também encontrar emprego.

     

    E qual dica você dá para reconstruir essa rede?

    Falar a língua é fundamental. Eu já falava inglês quando cheguei aqui, mas senti a necessidade de aprimorar e me inscrevi num curso gratuito para adultos. Em praticamente toda cidade você pode encontrar um curso gratuito. Aprender a língua local é extremamente importante porque te permite interagir com o maior número de pessoas possível. Para criar uma nova rede social efetiva, não podemos interagir só com brasileiros. Temos que interagir com americanos e outros estrangeiros. Também me ajudou o fato de eu de ser muito comunicativa. Eu realmente converso com todo mundo. Saio na rua pra passear com o cachorro e converso com os vizinhos, os convido para a festa de aniversário dos meus filhos, gosto de cozinhar e receber gente em casa. Quando meu filho mais velho começou a ir pra escola, eu e meu marido também procuramos fazer amizade com os pais das outras crianças. Eu preciso conviver socialmente com outras pessoas. Na França também era assim.

    Você vive fora do Brasil e é casada com um estrangeiro. Como é conviver tão de perto no dia a dia com culturas diferentes?

    É  enriquecedor, mas às vezes também gera dúvidas, inclusive na criação dos filhos. Aqui, por exemplo, os pediatras não aconselham a dar suco de frutas para a criança, porque costuma-se comprar suco pronto e esse suco contém açúcar. Já no Brasil recomenda-se dar suco a partir dos quatro, cinco meses. Na França, nenhuma criança come fruta fresca até completar um ano, só fruta cozida. O que é certo e o que é errado afinal? Eu tive muita sorte de encontrar aqui um ótimo pediatra para os meus filhos que diz o seguinte: “O que é certo para a criança é o que dá paz de espírito para os pais”. Não é maravilhoso isso? E é exatamente o que eu faço. Pego o que acho melhor de cada cultura.

     

  • Valéria Sasser

    Valéria Sasser

    Há 18 anos, apostando num relacionamento que dura até hoje e que começou no velho chat ICQ, Valeria Sasser deixou o Brasil e veio para a Califórnia. Aqui, sempre esteve extremamente ligada à comunidade brasileira, seja por meio de entidades voltadas à língua portuguesa ou representando a nós, brasileiros no exterior, como voluntária junto a um canal de comunicação do Itamaraty.

    Com esse olhar privilegiado, Valeria desenvolveu uma visão crítica sobre a nossa comunidade e sugere que estejamos mais dispostos a aprender com os latinos e portugueses, por exemplo, que há muito mais tempo trilham essa estrada.

    E, mesmo considerando os altos e baixos da vida de imigrante, ela deixa claro que a experiência vale a pena, desde que estejamos despidos de nossos preconceitos e abertos para o novo.

     

    Como era sua vida no Brasil?

    Minha vida no Brasil era bastante comum. Virei adulta no eixo Rio-Niterói durante os anos 80. Época bastante confusa, com inflação alta e, com o final da ditadura militar, de reorganização política. Trabalhei em grandes empresas no Brasil e como tradutora free-lance nos últimos anos antes de imigrar. Meu primeiro emprego foi na Varig, o que me permitiu conhecer muito do Brasil, desde Alter do Chão, no Pará, até o Rio Grande do Sul. Cresci em um mundo analógico e fiz a transição para o mundo digital. Utilizei tanto máquina de escrever quanto processadores de texto e considero isso uma vantagem, pois me dá a capacidade de ver certas coisas mais globalmente, além de agilidade para mudar de direção e abraçar o novo, o diferente. Sempre gostei muito de praia, sol, calor. E é disso que mais sinto falta aqui na Bay Area com suas praias de águas congelantes e vento frio.

    Como você veio parar nos EUA? Quais foram seus maiores desafios?

    Eu me apaixonei por um americano que era militar, ainda na ativa. Ele não podia ir para o Brasil, a única opção era eu vir pra cá. Nunca havia pensado seriamente em imigrar. Acreditem ou não, eu o conheci no antigo chat do ICQ, em 1998, bem no início de tudo isso. Para se ter uma ideia, o Google tinha sido fundado dois anos antes, e o Facebook só veio a ser criado em 2004. Smartphones ainda não existiam, portanto nada de Skype ou Facetime e e-mail era o meio mais rápido de comunicação.

    Os desafios foram vários. Eu falava inglês, mas aqui percebi que falhava na fluência e imediatamente entrei em uma escola para adultos e no community college. Quiseram me colocar no English as Second Language (ESL), mas me recusei, afinal eu já falava e entendia tudo. Me matriculei em matérias com muito texto e explanações vigorosas.

    Esse passo foi fundamental para adquirir a fluência que eu buscava. Cometia erros e seguia em frente. A brusca mudança cultural gerou muitos conflitos entre eu e meu marido no início, mas hoje rimos das histórias, algumas muito engraçadas.

    O que você gostaria que soubesse antes de ter se mudado

    Apesar de saber que haveria diferenças culturais, eu não sabia o quão profundas elas seriam. Quando se casam, homens e mulheres têm um choque cultural (foram criados em casas diferentes, com hábitos e atitudes diferentes, além de serem homem e mulher). No meu caso, as opções anteriores, acrescidas de cultura e país diferentes, imigrante versus local. Ele nasceu e cresceu no chamado Southwest e estávamos na Califórnia, portanto, ele mesmo enfrentava diferenças culturais com a cultura que eu estava abraçando. E, para piorar, ele é republicano e eu, democrata (não, ele não votou no atual presidente, apesar do partido). Se eu conhecesse mais profundamente esses e outros detalhes da cultura americana, eu poderia ter feito muita coisa diferente e ter me adaptado mais rapidamente.

    Quais foram seus projetos mais importantes aqui na Bay Area e com a comunidade brasileira?

    De todos os projetos, eu mencionaria três como mais importantes: o Projeto Contadores de Estórias, que liderei de 2007 a 2012; o Instituto Brasil de Educação e Cultura (IBEC), cuja fundação foi liderada por mim em 2011; e minha experiência como porta-voz do Conselho de Cidadãos de São Francisco junto ao Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE) – deste último eu ainda sou ativa.

    Os dois primeiros foram importantes por serem canais de acesso à língua portuguesa na nossa região. O último, por me permitir trabalhar junto ao governo brasileiro, inspirando, corrigindo e sugerindo políticas públicas que auxiliem a via transnacional de estimados 4 milhões de brasileiros no exterior. Conseguimos, ao longo dos anos, vitórias importantes, como o passaporte de dez anos. Agora, estamos trabalhando a respeito da sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a cidadania brasileira. Ao participar das reuniões e conferências com brasileiros residentes no mundo inteiro, temos a perspectiva de quanto nosso trabalho voluntário no CRBE é importante. Para mais detalhes sobre o CRBE, vejam o decreto que o criou  e o plano de ação.

    Além dos projetos acima, escrevi regularmente para duas publicações voltadas aos brasileiros, escrevo ocasionalmente para a Medium e o LinkedIn, fiz parte por um ano do conselho da Brazilian Alliance e organizo vários eventos durante o ano ligados à promoção e difusão da língua portuguesa, tais como cursos e workshops para a formação de professores e a celebração do Dia da Língua Portuguesa. Desde dezembro, sou editora-chefe do Portuguese Language Journal, publicação acadêmica ligada à American Organizations of Teachers of Portuguese (AOTP), da qual também já fui conselheira para a Costa Oeste.
    Colaborei ainda com vários projetos, tais como o Plano Ato Brasil, que visa informar os brasileiros sobre seus direitos imigratórios e projetos de terceiros que estejam alinhados com minhas perspectivas e valores.

    Fale um pouco sobre a sua experiência com o trabalho com a comunidade brasileira da Bay Area. Quais as oportunidades e desafios de trabalhar com a comunidade brasileira?

    Essa pergunta é complicada. De cara, posso dizer que a falta de engajamento e de apoio da comunidade é um dos maiores problemas. A comunidade, de modo geral, é extremamente individualista e muitas vezes egoísta mesmo. Me espanta a falta de empatia com o brasileiro ao lado e o imediatismo. Empresas e negócios dedicados aos brasileiros muitas vezes fecham pela falta de apoio e compromisso da comunidade, que vão do desinteresse até o calote. Maus hábitos trazidos do Brasil que podem destruir uma comunidade.

    Nesses meus 16 anos de observação privilegiada, a comunidade mudou consideravelmente e parece bastante volátil. Há um movimento grande de brasileiros dentro das comunidades, pessoas chegando e partindo todo o tempo, tanto pessoas sem especialização quanto pessoas com muita especialização. Manter a informação corrente e constante e promover a integração dos antigos com os recém-chegados é um desafio para grupos como o BRAVE.

    Outro problema é o fato de o brasileiro não se associar nem aprender com comunidades mais antigas, como a dos latinos. E olha que somos latinos também. Não somos hispânicos, mas somos latinos. O mesmo ocorre com a comunidade portuguesa, com os brasileiros trazendo para cá e replicando preconceitos antigos e inúteis no relacionamento com essas comunidades, desde o desdém e o ridículo baseados na ignorância com relação a culturas ricas e similares à nossa até a exploração de latinos por empregadores brasileiros. Essas comunidades, por estarem mais tempo na estrada, podem nos ensinar e podem também ajudar a fortalecer a nossa voz.

    Qual a sua sugestão para que a comunidade se torne mais engajada e unida?

    A comunidade precisa se ver como comunidade. Os brasileiros, em geral, são bem individualistas e não veem o outro como parceiro, mas como concorrente. Outros repetem aqui os comportamentos predadores que criaram o clima de desconfiança que existe no Brasil. Outros ainda trazem arrogância e preconceitos daquela sociedade e os replicam aqui. O preconceito linguístico, por exemplo. Quando eu liderava o IBEC, tínhamos professores de todas as partes do Brasil, inclusive do Nordeste. Uma vez, os pais de duas crianças disseram que queriam que elas aprendessem o português com um sotaque, digamos, de mais prestígio (não usaram exatamente essas palavras…). Eles não queriam que seus filhos aprendessem o sotaque nordestino. Como se a língua fosse estática e como se os sotaques deles próprios não fossem mais influentes. Como se essas crianças fossem falar com o sotaque do professor. São alunos de herança, falariam com seus sotaques estrangeiros e o sotaque da família.

    Outro problema são as condutas moralmente reprováveis que muitos têm dentro da comunidade. Por exemplo, uma pessoa encomendou dois centos de salgadinhos de uma brasileira em caráter de emergência. No momento que a mesma ligou avisando que tudo estava pronto, a pessoa que fez a encomenda disse que não queria mais, porque encontrou mais barato em outro lugar. Outro que alugava quartos e explorava todo mundo até que foi levado à Justiça. Esse tipo de coisa cria discórdia e gera ressentimento, desconfiança. Por que fazer isso? Outra questão é a de agir por impulso, sem analisar as situações, sem pensamento crítico. É preciso ter cuidado.

    Aqui, somos todos imigrantes brasileiros. Não importa regionalismos, preconceitos, somos apenas brasileiros no exterior. Devemos ter compromisso, cada um de nós, com todos nós. Devemos nos cuidar e nos respeitar.

    Você tem algum mentor, alguém que te inspirou ou ainda inspira?

    São vários e nem me arriscaria a mencionar nenhum para não correr o risco de ser injusta com alguém. Além de pessoas com as quais tenho contato pessoal, sou ávida leitora. Leio desde livros e artigos acadêmicos sobre transnacionalismo, educação e língua portuguesa até livros sobre negócios, política, tecnologia, ciências sociais, dentre outros muitos. Sou uma colcha de retalhos de todas essas influências e informações. Tenho muito a aprender todo dia.

    Quais os próximos planos?

    Venho considerando concorrer a cargos públicos na minha cidade aqui nos Estados Unidos. Ainda não tomei uma decisão. Mas se me candidatar e vencer, serei a primeira brasileira eleita a um cargo público na Califórnia.

    Eu trabalho para o judiciário estadual há mais de dez anos e vejo com respeito o trabalho duro feito dentro da minha agência, observo a criação de políticas públicas de perto. Além disso, meu envolvimento comunitário e com o governo brasileiro na concepção de políticas públicas brasileiras, assim como meus contatos locais com outras comunidades de cor, me deram uma perspectiva valiosa sobre o que as comunidades precisam. Acredito que há muito a fazer nas políticas públicas locais para que elas sejam mais inclusivas e respeitem as comunidades imigrantes, dentre vários outros assuntos abordados sob a lógica e a perspectiva progressista. Mesmo que o imigrante já seja cidadão americano, essa sociedade, mesmo que sutilmente, coloca um telhado de vidro sobre pessoas com sotaques ou de cor. Especialmente agora, sob essa administração racista e sem compromisso com a inclusão social.

    Os ideais progressistas que remontam à fundação deste país são baseados na perspectiva moral de empatia e na responsabilidade de cada um com um Estado que protege e empodera seus cidadãos. Uma comunidade forte se faz com pessoas de todos os extratos sociais, dos menos favorecidos aos ricos. Todos lucram e crescem com a solidez de ter todos os pontos de vista sendo levados em consideração. Tenho certeza que a força de vontade e a coragem que o imigrante tem de modo geral, apenas pelo fato de  imigrar, é a mesma necessária para a vida política. Espero ver outros brasileiros e brasileiras concorrendo a cargos públicos.

    Alguma dica para quem está se mudando pra cá ou quer trilhar um dos caminhos que você já trilhou?

    Venha sem medo. Mas dispa-se de muitas de suas certezas sobre o que é a cultura americana. E venha com o coração aberto para aprender tudo de bom que essa sociedade tem a oferecer.

    Separe o joio do trigo. Desvencilhe-se de seus preconceitos sociais e síndromes diversas, como o complexo de vira-lata.

    Venha apreciar e aprender. Existe uma curva imigratória pela qual todos passamos, em maior ou menor escala, que é composta de quatro fases: lua-de-mel, realidade, fundo do poço e assimilação/aculturação (chamo de fase de paz). Na primeira, chegamos em “awe”, depois vamos vendo o que há de bom e ruim na sociedade local e comparando. Após essa fase, chegamos ao fundo do poço, quando achamos o novo local o fim do mundo e temos o impulso de voltar. Por fim, começamos a nos reerguer de novo, vendo coisas boas, comparando novamente e pesando os prós e contras, já participando da cultura e da vida local. Tendo em mente que você passará necessariamente por uma ou mais dessas fases, já é uma vantagem ter consciência que imigrar é de fato um grande processo.

    Além disso, tenha em mente que, depois de se adaptar, você terá uma vida transnacional, pertencendo a dois lugares simultaneamente. Em tempos de globalização e tecnologia, isso é fantástico. Curta seu momento e participe de grupos como o BRAVE, Brasileiros em São Francisco, etc. Vá aos eventos comunitários. Faça aquele esforço extra para se integrar às comunidades. Vale a pena.